Outros modos de percepção na natureza através da arte.

Hoje não diferente de outros momentos da história muitas das produções artísticas contemporâneas vem a evidenciar as atuais transformações que acontecem ao redor do globo. Queimadas desenfreadas, o consumo agressivo de recursos naturais, poluição, pautas presentes nos questionamentos ambientais que reverberam e dialogam com o antropoceno. Partindo da ideia de como podemos evidenciar tais fatalidades, como o artista pode fazer parte das atuais discussões a respeito da natureza a fim de evidenciar e sensibilizar o público?

Grande parte dos ambientes retratados em obras da ficção científica remetem a ambientes devastados onde a natureza não se faz mais presente. Parte desse ambiente é uma consequência do uso desenfreado da tecnologia, guerras, consumismo, onde o recurso natural se faz escasso devido ao grande consumo da matéria bruta. De fato, o caráter tecnológico se faz presente para muitos como algo negativo, como por exemplo as atuais consequências da inteligência artificial, monitoramento, controle, a substituição da mão de obra humana e em diversas áreas, incluindo áreas de conhecimento pela máquina. Esse caráter negativo da tecnologia é um assunto a ser questionado sim, porém algumas das recentes produções de artistas que trabalham na multidisciplinaridade, fazem da tecnologia um dispositivo que pode ser utilizado para um outro meio de percepção do nosso mundo, muitas vezes ampliando nosso campo de sensibilidade e apresentando um outro ponto de percepção sensível na natureza. Tal movimento proposto por esses artistas possibilita uma resposta contra a cronocracia. A cronocracia defende:

A aceleração do tempo nos transportes, nas trocas comerciais e na comunicação está ligada à dinâmica do capitalismo global, que define as estruturas da sociedade mundial. O objetivo é maximizar a velocidade de todos os processos de trabalho e comunicação, de forma a aumentar sua funcionalidade e rentabilidade. A aceleração do tempo se torna um meio de aproveitamento, ou seja, uma exploração abusiva dos recursos humanos. (WULF, JUNIOR. 2019, p. 50).

Tal pensamento vai de encontro aos atuais movimentos relacionados ao aceleracionismo, onde perdemos o tempo de fruição e de conhecimento, deixamos de vivenciar o tempo cíclico, processos de vida na natureza e nos seres humanos. Além desse tempo de fruição perdido na cronocracia fica mais difícil desenvolver sabedoria.

A sabedoria requer outra forma de lidar com o tempo. Somente sua desaceleração permite ao ser humano interagir com coisas, pessoas ou consigo mesmo, sem visar a um objetivo específico. À sabedoria só surge quando nos damos o tempo necessário, sem seguir permanentemente a lógica temporal e produtiva do capitalismo. De tempos em tempos, é preciso desligar-se da roda viva e dar-se o tempo de entrar em contato com fenômenos e com outros seres humanos. (WULF, JUNIOR. 2019, p. 50).

Mas antes de entrarmos nas produções que criam uma espécie de diálogo entre o público e a natureza mediada pela tecnologia, acredito ser interessante apresentar alguns artistas que trabalhavam essa relação com o público, a partir da experiência com a Land Art.

Artistas já enfatizavam a potência da natureza antes mesmo do ingresso e confluência da tecnologia em suas produções. Um caso que pode ser citado e que acredito que possa ser exemplo é a obra Spiral Jetty do artista Robert Smithson. Spiral Jetty consiste em uma espiral produzida em 1970 às margens do Great Salt Lake um enorme lago de águas salgadas localizado no estado de Utah, Estados Unidos. A obra consiste em uma espiral feita com basalto, terra e cristais de sal a partir da margem do lago, e possui 1500 metros de comprimento e 15 metros de largura. Nessa época o questionamento dos espaços expositivos se fazia presente na produção dos artistas que gradativamente questionavam o lugar da galeria e nesse questionamento do espaço alguns artistas trabalhavam o reconhecimento das estruturas geológicas da terra.

Robert Smithson

Figura 1. Robert Smithson, Spiral Jetty , 1970 Fonte: https://umfa.utah.edu/spiral-jetty

A Land Art, Earth Art ou Earthwork é o tipo de arte em que a natureza ao invés de proporcionar um espaço para a obra, torna-se em si parte da obra. Hoje a obra de Smithson se encontra no mesmo lugar, porém sofrendo com as ações do tempo, no caso as altas e baixas da maré que por vezes fazem a proposta do artista ficar submersa. Essas ações acendem sobre os atuais discursos sobre a natureza, no caso a exploração de óleo natural de Great Salt Lake coloca Spiral Jetty em risco. As produções em Land Art dialogam diretamente com o local ao qual estão inseridas, enfatizando uma possível entropia, como o próprio artista trabalhou em seu artigo em 1960 que leva o nome de A entropia e os novos monumentos. Nesse artigo Smithson se utiliza do conceito desenvolvido por Rudolf Clausius em 1854, que consiste no processo de homogeneidade térmica, que se incrementa com o aumento de energia. A entropia vem de uma relação de troca de estados térmicos, no caso duas matérias com temperaturas diferentes tendem a ter uma troca de temperatura onde a mais quente passa a aquecer a mais fria a potencializando. Quanto mais extremas são as temperaturas, mais energia se produz e assim mais entropia. O retorno as temperaturas de forma as igualizar acontece de forma progressiva e natural. A produção de Smithson enfatiza essa possível associação com a entropia à medida que o seu trabalho evidencia as atuais transformações na natureza reverberadas através de sua obra, que com o passar do tempo enfatizam o crescente consumo de recursos naturais e outras pautas com relações ambientais.

Smithson antes do acidente aéreo que tirou sua vida tinha planos de trabalhar em áreas devastadas refletindo a respeito da extração mineral e sobre a impossibilidade de recuperar uma área completamente devastada. Para ele, retornar um ambiente ao seu estado original era impossível visto que para recompor o relevo original um outro ambiente seria devastado. Seu objetivo era transformar o entorno inutilizável em proposta estética diante da impossibilidade de recuperar uma paisagem em sua totalidade. Em Bingham Copper Mining Pit — Utah Reclamation Project de 1973 o artista faz uma intervenção a partir da fotografia de Bingham Copper Mining Pit em Utah, uma mina de cobre. Essa intervenção fazia parte do projeto de apresentação da proposta de Smithson onde o artista com um uma lâmina de transparência desenha sobre a imagem com cera branca e lápis preto. Na intervenção é possível observar um disco giratório com 4 linhas em um fundo branco centralizado no fundo do poço. O desenho parece sugerir um movimento de vórtice em direção ao seu centro.

Robert Smithson

Figura 2. Robert Smithson, Bingham Copper Mining Pit — Utah Reclamation Project , 1973 Fonte: http://notations.aboutdrawing.org/robert-smithson/

A intervenção na fotografia fazia parte de uma proposta que seria apresentada a Kennecott Copper Corporation, proprietária da mina, na esperança de obter permissão para construir uma terraplenagem no local. Como citado acima Smithson tinha a intenção de trabalhar nesses locais explorados a fim de recupera-los, era um movimento presente na landart buscar uma conscientização do meio ambiente. Não diferente hoje, muitas das produções contemporâneas dialogam com questões ambientais que se tornaram mais evidentes com os discursos do antropoceno e os atuais desastres ambientais.

A associação proposta por Smithson com a entropia torna vivo esse diálogo da obra ou proposição artística com a natureza presente na produção de outros artistas. Tais proposições enfatizam, potencializam um lugar, criam uma experiência.

Walter de Maria cria uma experiência com sua proposição Campo de Relâmpagos. Campo de Relâmpagos é constituída de 400 postes de aço inoxidável de 5cm de diâmetro e de uma altura variável, em torno de 6m para que todos os postes tenham a mesma altura tolerando assim as irregularidades do terreno. Essas hastes são fincadas no terreno de 1 milha por 1km com um sistema métrico dividindo majoritariamente a superfície. Com esses postes dispostos em uma distância calculada e instalada no deserto do novo México, criam uma zona de atração energética que ao passar das nuvens geram uma descarga elétrica. Walter de Maria trabalha assim a relação de terra e céu, onde ambos estão em sua contemplação. Com sua proposição o artista leva a reflexão do público com a paisagem, para isso ele propõe uma permanência de 24h, onde a luz é tão importante quanto o relâmpago. Durante essa permanência o público pode acompanhar durante o dia o efeito do sol nos potes onde as sombras se tornam imperceptíveis ao meio dia.

Walter de Maria

Figura 3. Walter de Maria, The Lightning Field , 1977. Fonte: http://www.land-art.noradar.com/walter-de-maria.htm

Alguns artistas desdobram essa experiência a partir da sua vivência com o lugar. Guto Nóbrega nos proporciona essa experiência a partir da sua obra Vegetal Reality Shelter (VRS). A partir de uma vivência na Floresta Amazônica organizada pelo LABVERDE o artista nos cria uma experiência em um domo imersivo, dentro desse domo tem um sistema hidropônico de plantas, seis canais de áudio e um projetor de vídeo que tem a sua imagem projetada em um espelho esférico que reflete essa imagem no domo. As plantas são monitoradas quanto à resposta galvânica de suas folhas que se alteram a partir da respiração do público quando esse se insere no domo interagindo assim com o sistema. Esse monitoramento quanto a respiração altera a paisagem sonora e as imagens da floresta ali projetadas. A intenção do artista é proporcionar ao público uma experiência virtual da natureza a partir de sons e imagens.

Guto Nobrega

Figura 4. Guto Nóbrega, Vegetal Reality Shelter (VRS) , 2020. Fonte: https://2020.programacomciencia.org.br/exposicao/

Na mão de artistas, não diferente de outros tempos, os dispositivos eletrônicos se fazem presente em suas produções, por vezes se aproveitando de uma funcionalidade disponibilizada por quem criou essa tecnologia, em outros momentos esses dispositivos são hackeados afim de apresentar outras funcionalidades e a ainda a possibilidade de dispositivos eletrônicos nascerem da curiosidade e inventividade desses mesmos artistas. Essas possibilidades de utilização desses dispositivos funcionam como potencializadores de um discurso, de uma poética. Pensar o uso da tecnologia como potencializador de uma narrativa. Essa é a possibilidade apresentada por esses artistas que trabalham na multidisciplinaridade, proporcionando uma experiência reverberada, como se a obra fosse um dispositivo mediador da natureza com o público.

Na obra BioSoNot o artista mexicano Gilberto Esparza cria artefatos sensiveis que coletam dados e interpretam esses dados em frequencias sonoras. Esses dados são coletados a partir das águas contaminadas de rios e que são traduzidas por esses artefatos a partir da atividade biológica desses microorganismos.

Gilberto Esparza

Figura 4. Gilberto Esparza, BioSoNot , 2019. Fonte: http://gilbertoesparza.net/portfolio/biosonot/

Da mesma maneira Robert Smithson que a partir da sua proposição Spiral Jet potencializa o fazer artístico frente a um ambiente, a proposição por ele estabelecida se reverbera a partir da natureza. Se refletirmos Spiral Jet como um dispositivo poético, um potencializador de uma relação do público com a natureza. A partir da reflexão proposta por Alfred Whitehead no seu livro O Conceito de Natureza, ele propõe o seguinte conceito:

Existem, portanto, três componentes em nosso conhecimento da natureza, a saber: fato, fatores e entidades. Fato é o termo indiferenciado da apreensão sensível; fatores são termos da apreensão sensível, diferenciados enquanto elementos do fato; entidades são fatores em sua função enquanto os termos do pensamento. As entidades assim referidas são entidades naturais. O pensamento é mais amplo que a natureza, de sorte que existem entidades do pensamento que não são entidades naturais. (Whitehead, 1956, p. 19).

A partir desse conceito podemos criar a seguinte relação. O fato como objeto, os fatores como a natureza ou o ambiente e as entidades como o receptor. O fato como objeto, ele inserido na natureza como reverberante dos fatores, funciona como um filtro em diálogo da natureza com o público. Os fatores como a natureza, passível das mudanças que ocorrem na natureza e sem controle no objeto que reverbera a partir dessas mudanças. O publico como entidade, que recebe essa informação reverberada no objeto. Assim pensar a obra como um dispositivo poético que cria uma relação do público com o ambiente ao qual está inserido, funcionando como um filtro passivo de mudanças a partir da natureza. Assim podemos refletir na obra de Robert Smithson como um dispositivo que estabelece esse diálogo entre a natureza e o público. Esse diálogo gera uma potência de ambas as pontas, da natureza, dando ênfase ao seu estado e ampliando sua percepção e o público que recebe essa reverberação da obra.

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